domingo, 30 de novembro de 2025

Canoa: banquete de hipocrisia

Canoa: banquete de hipocrisia

 

Professor Nazareno*

 

            Uma canoa totalmente desgovernada boia, sem rumo e sem destino, por uma das inúmeras ruas alagadas daquela estranha e sinistra cidade. Nela estão embarcados vários meninos que cantam alegremente. Eles gostam muito de brincar na chuva. Todo ano fazem isso para se divertirem. Barretinho, Chaves, Libanês, Betinho e Zé Coelho estão tão felizes que não percebem os perigos que existem. Também não veem as pessoas se afogando a cada instante nas imundas e caudalosas águas que entram nas suas casas. Os amiguinhos de infância parecem também não saber que as mortes causadas pelas águas infectas podem ser de sua responsabilidade. Todo ano eles brincam naquelas águas podres como se não existisse o amanhã. A cidade onde eles navegam já tem mais de 111 anos de existência, mas nenhum deles nasceu nela. Por isso que as famílias apoiam a brincadeira.

            Essa canoa está toda furada, velha, esburacada, precisando de reparos, emendas e breu. Ela pertence à comunidade, mas é Barretinho quem está tomando conta dela no momento. Chaves até tinha indicado uma colega dele para ficar com essa canoa, mas durante uma outra e corriqueira alagação, Barretinho foi mais esperto e “dançou” em uma enorme poça d’água e muitas pessoas, que depois seriam afogadas em outras futuras enchentes, logo gritaram para que a canoa mudasse de dono. E assim foi feito. Chaves e Barretinho são até amigos, mas não se dão muito bem. O problema é que Chaves disse um outro dia que ia amar, cuidar, abraçar e acariciar aquela velha e imunda canoa e nem sequer deu um beijo nela, apesar de ter passado oito longos anos cuidando da mesma. Esses meninos mentem muito e quem sofre com isso são os donos de verdade dessa canoa.

            O garoto Libanês parece que também não tem muito amor a essa velha, distante e carcomida embarcação. Quando estava cuidando dela, por exemplo, fez um Natal “inesquecível” com pneus velhos envergonhando dessa forma quase todos os moradores na época. Nada, nem na canoa nem na sinistra cidade, lembra os dias em que Libanês cuidou daquele esquecido caiaque. Já o menino Betinho, alguns dizem que conseguiu cuidar melhor do velho bote. Projetou alguns viadutos inacabados, que não melhoraram em nada a mobilidade urbana. Ele também não cuidou das alagações constantes que existem há tanto tempo no ermo e atrasado lugar. Saiu pela porta dos fundos, mas muitos dizem até hoje que foi injustiçado. Zé Coelho foi tão apagado que raras pessoas ali sabem que o mesmo cuidou um dia daquele lugar, daquele rincão. A canoa continuará sem rumo!

            De todas as canoas existentes no país, aquela é a pior de todas. Entra ano e sai ano e o martírio dos seus habitantes parece que não tem fim. Com as chuvas chegando, as alagações fazem a triste rotina dali. Já no verão, o tormento são as queimadas com fumaça tóxica e hospitais lotados com velhos e crianças tossindo e com pneumonia. Mas os meninos que brincam na canoa são imunes a tudo isso: nunca foram buscar saúde num certo “açougue” que existe no lugar. Existem, claro, muitos outros meninos privilegiados por ali, mas isso é uma outra história. Há outros meninos e também outras canoas. Mas eles nunca se entendem. Brincam alegremente como se não existissem pessoas que dependem do trabalho deles. A canoa não pode ser consertada, pois assim não haveria mais nada a prometer. Como diz a música: “o hoje é apenas o furo no futuro”. Os meninos canoeiros vão ainda se divertir muito e os afogados sempre os levarão ao poder.

 

 

*Foi Professor em Porto Velho.

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