quarta-feira, 27 de julho de 2011

Calama, a (última) pérola do Madeira



Calama, a Veneza Esquecida do Madeira


Professor Nazareno*

            
                  O paraíso existe e está localizado em Rondônia. Às margens do lendário rio Madeira distante uns 200 quilômetros de Porto Velho, entre a divisa com o Estado do Amazonas e a foz do rio Ji-Paraná ou Machado, o pequeno e isolado distrito de Calama, com uma pequena população não superior a duas mil pessoas está lá como se perdido no tempo. Banhada pelas barrentas águas do Madeirão e quase toda cercada pela imponente floresta Amazônica, a mais antiga das vilas da Capital não tem e nunca teve carros ou qualquer outro tipo de automóvel circulando em suas verdes e arborizadas ruas e o seu acesso só é permitido pelos barcos de linha ou de helicóptero. Cortada por inúmeras pontes de madeira e de ferro que ligam os seus bucólicos três bairros ao centro, a última povoação ao norte do Estado é bela e liga o passado direto ao futuro.
            Muito mais antiga do que Porto Velho e Guajará-Mirim, as duas primeiras cidades de Rondônia, devido ao processo de povoamento remanescente da beira dos rios ainda no antiqüíssimo Primeiro Ciclo da Borracha, a insólita vila resistiu bravamente a toda e qualquer tentativa de modernização. Quem há 30 anos conheceu Calama, hoje percebe que ela está um pouco menor, mas com uma alma superior a qualquer concentração urbana do Brasil e do mundo. Nunca teve a tração animal e nem com ela convive, mas tem internet e das mais modernas que se conhece só que estranhamente pouco procurada em tempos de mundo digital. A violência infelizmente já está chegando, turbinada pelo consumo de álcool e de outras drogas, mas ainda é possível dormir de portas e janelas abertas sem o medo de ser incomodado pela delinqüência.
            Tentativas de tirar esta aprazível vila do isolamento, e conseqüentemente decretar o seu iminente fim, já foram feitas e são tentadas quase que diariamente. Qualquer estrada ou via que ligue o distrito ao resto do mundo seria uma tragédia sem precedentes. O charme de Calama é a sua localização. Com acesso fácil, a invasão de pessoas oriundas das cidades com os seus vícios, violência, carros, pressa, roubos e outras mazelas seria inevitável. Já há cidadãos de Calama morando em várias partes do mundo: de Estocolmo na Suécia, Genebra na Suíça, São Paulo ou Rio de Janeiro é possível observar seus filhos que saudosamente voltam às suas origens todos os anos. Porém, Calama pode desaparecer: o Madeira, com a sua fúria, está impiedosamente retirando-lhe o barranco que lhe dá sustentação.  Medo e angústia campeiam no lugar.
            O fim de Calama, entretanto, é o fim de uma época. O começo da História de Rondônia está testemunhado naquelas barrancas, outrora repletas de “pelas” de borracha e outros produtos amazônicos e hoje quase esquecidas pelo poder público. Os velhos casarões do Segundo Ciclo da Borracha e hoje caindo literalmente aos pedaços dão pena a quem os observa. A construção das hidrelétricas no Madeira também não trouxe boas notícias para aquele povo ribeirinho: entre Porto Velho e o distrito de São Carlos em breve ficarão bem pior as condições para a navegabilidade. Dificuldades aumentarão e pode demorar ainda mais a viagem de barco até a capital. Por conta do “estupro” sistemático do rio Madeira, a oferta de peixes e outros produtos diminui a cada ano e não se vêem medidas efetivas de compensação para a população carente.
            Impossível não se lembrar da Calama do Senhor Benjamim Silva, de Alfredo Teles, do professor Goldsmith Correa Gomes, do comerciante Joaquim Pires, da Dona Mercedes, do Chico Prestes, do Ivo Santana, do Santa Bárbara, do Padre Vitório e de tantos outros heróis sempre lembrados pelos moradores. Como esquecer o bom futebol de Calama que já exportou craques até para a Europa? O clássico local Remo e Ponte Preta, a equipe do São Francisco e tantos outros bons times? O peixe com farinha, a carne de caça, o encontro das águas, o fenômeno das terras caídas, as enchentes e as muitas pessoas que se perderam em suas fechadas matas? A secular Calama é assim mesmo: combina o velho com o novo sem perder o seu charme, o seu encanto. Resiste a toda forma de agressão e não se deslumbra com o moderno. Mãe de toda a Rondônia, a pacata vilazinha observa atentamente, como uma verdadeira matriarca que é, o desenvolvimento dos filhos e pede para viver confortavelmente no seu anonimato para que possa ter mais alguns anos de vida. Existe progresso melhor do que ter uma vida sem violência, sem drogas, sem pressa, sem trânsito, sem poluição e sem as mazelas de um mundo dito desenvolvido e civilizado?




É Profesor em Porto Velho.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

A natureza de Rondônia está se acabando...




Espelhos e Miçangas em Troca da Natureza

Professor Nazareno*

A vinda de um Presidente da República (Presidenta) a Rondônia, província distante e atrasada, é a coisa mais rara do mundo. Poucos foram os mandatários da nação que tiveram coragem suficiente para “apoitar” em terras Karipunas. Como são autoridades nacionais, só vêm aqui a negócio. Dificilmente pernoitam no lugar e mais rápido do que chegam, voltam imediatamente para os seus afazeres na capital do país. Dilma Rousseff trouxe boas e más notícias: dentre outras coisas, veio ajudar na “morte” do nosso lendário rio Madeira e mostrar o que tinha para compensar um dos maiores crimes ambientais da História da humanidade: um “trem da alegria” bancado com o dinheiro do restante do Brasil e que espera, com isto, calar para sempre qualquer voz destoante. Porém, se a nossa Presidente tivesse ficado uns dias a mais por aqui, certamente poderia ter observado muitas coisas bisonhas nestas terras distantes. Uma estada inesquecível para uma pessoa com o bom gosto que ela deve ter.
Claro que Rondônia não tem absolutamente nada de interessante para se ver. Muito menos Porto Velho, a sua imunda e cara capital.  Mas os assessores da Presidente poderiam tê-la levado para assistir pelo menos durante uma noite ao Arraial Flor do Maracujá. Coitada da nossa Presidente: não haveria castigo pior para uma autoridade. Certamente ela sofreria mais do que nos tempos em que foi guerrilheira na inóspita região do rio Araguaia. Além do calor infernal capaz de assar qualquer cristão e de toda a sorte de incômodos, ela poderia perguntar por que a cultura local não tem nada de original: muito melhor do que isso se poderia ver em Parintins, Caruaru ou qualquer outro lugar do país sem ter que “doar seu sangue para carapanãs”.  Além do mais, onde a nossa mandatária maior ficaria hospedada? Se não ficasse na Base Aérea da cidade, lugar hospitaleiro e aprazível, optaria por um dos muitos hotéis daqui e, a preço de um cinco estrelas de Dubai, passaria a noite numa espelunca qualquer com direito a curuba, chatos, carrapatos e mucuins. Como tem muita sorte, livrou-se do pior.
Roberto Sobrinho, o nosso JK e mandatário maior da cidade, teria dado as boas vindas “à companheira”. Que tal começar mostrando a obra dos viadutos? “É a tumba do PT de Rondônia”, informaria o nosso Prefeito. Dilma ficaria encantada com tanta competência. Não fosse a poeira e a insuportável catinga que exala das fedorentas ruas da cidade, a nossa Presidente teria observado sem problemas o que fizeram com os mais de 700 milhões de reais do dinheiro do PAC que fora destinado para dar “cem por cento de saneamento básico e água tratada para a capital dos rondonienses”. Lições de como se administra bem o suado dinheiro do contribuinte certamente ela levaria para, quem sabe, empregar no país inteiro. A urbanização da Vieira Caúla, do porto da cidade, a arborização das ruas e tantas outras obras inacabadas ou superfaturadas certamente encantariam a nossa Presidente. Claro que ela gostaria de saber também como se governa um povo usando apenas um blog e a mágica de se formar um Governo sem um único cidadão ficha-suja. Talvez ela quisesse importar muitos dos nossos políticos honestos.  Na Câmara de Vereadores entenderia o que é fidelidade canina ao Executivo.
Se Dilma sofresse qualquer mal-estar, teria o Hospital João Paulo Segundo para resolver o problema. Centro de pesquisa e referência no Brasil inteiro no tratamento de qualquer patologia, este conceituado hospital certamente teria sido elogiado pela nossa Presidente e por toda a sua equipe. No entanto, ela ficaria confusa por não entender como mais de um milhão e seiscentas mil pessoas podem ser tão burras e idiotas a ponto de trocar seus recursos naturais por espelhos, miçangas e quinquilharias. Confusa, ela perguntaria por que a energia gerada nas usinas do Madeira não vai ficar por aqui. “Vossa Excelência já selou o destino deste rio idiota”, diria sussurrando um rondoniense nativo com várias contas bancárias e rindo à toa por causa de uma tal isonomia e de uma transposição. “Isso só serve para jogar o nosso esgoto nele”, completaria o desdentado “maninho” e agora ex-beiradeiro. Ainda sem entender muita coisa, Dilma perceberia que as palavras do matuto fazem parte do repertório de esquisitices que certamente lhe disseram encontrar somente neste fim de mundo mesmo.
No canteiro de obras das usinas, a nossa Presidente veria como funcionam bem as leis trabalhistas do país que governa. O exemplo de Jirau é emblemático. Entenderia por que é importante um Estado pobre dispensar de grandes empresas pelo menos 600 milhões de reais em ICMS. À noite, poderia ir ao Campus da Unir para se deleitar com a excelente iluminação na parte da rodovia que fora recentemente duplicada. No ambiente universitário, debateria sobre qualquer tema com os muitos intelectuais e sábios que lecionam por lá. Quantas lições de improbidade a Fundação Rio-Mar não teria para a nossa Presidente? Ela visitaria também a “ponte do absurdo” e constataria “in loco” como os rondonienses são dementes e usam milhões de reais do dinheiro público para ligar o nada a coisa alguma. Tudo isto em vez de criar centros de pesquisas, escolas de excelência, hospitais decentes e boas universidades públicas para educar melhor os nossos jovens. Sem o menor senso de administração pública, nossas autoridades e governantes, talvez descompromissados com o futuro, jogam dinheiro e oportunidades no lixo. Se a Presidente Dilma não vier mais vezes a Rondônia, outros virão certamente. Óbvio que ainda há muito o que se levar daqui. Temos, ainda, a floresta, o Vale do Guaporé, o Cerrado, outros rios, a Chapada dos Parecis e tantas outras coisas que a natureza nos deu. “Quem nos dá mais?”





*É Professor em Porto Velho.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

O "Adeus" do nosso lendário rio Madeira



Oração de um Rio Estuprado


Professor Nazareno*


“... Sou o rio Madeira, mas já tive outros nomes: rio das Madeiras, rio Kaiary. Embora com quase um milhão de anos, afirmam que sou muito jovem e que ainda estou em formação. Parte de meu corpo (na verdade, minhas águas) nasce nos Andes bolivianos e caminha celeremente com outros nomes, já em território brasileiro, quando se junta a outros rios, para a minha formação atual. Sou alimentado pelos altos índices de pluviosidade que ajudo a formar no rigoroso inverno amazônico. Sou belo, é o que sempre escuto dizerem de mim. Serpenteio entre montanhas, planícies e florestas úmidas. Guardo em minhas entranhas variadas espécies de peixes e outros animais comestíveis. A minha água, apesar de esbranquiçada e barrenta, sempre foi doce como o mel e ser potável sempre foi a sua grande e reconhecida característica maior. No calor, minha água é gelada. Na friagem, ela fica morna como num passe de mágica. De muitos, matei a sede, a fome e até a ganância por metais preciosos. No Brasil, sou o maior tributário de outro rio também gigante: o Amazonas. Sou o maior rio-afluente do mundo. Navegável, respondo pelo equilíbrio ambiental amazônico...”.
“... No país vizinho, banho Departamentos e Províncias. No Brasil, rego dois Estados. Um dos quais, o mais agressivo contra a minha existência, ajudei a formar quando participei da criação de suas duas primeiras cidades. Com pouco mais de 330 quilômetros de uma ferrovia que me margeia, mas já esquecida e abandonada, levei um país inteiro do centro do continente ao encontro com o Atlântico e nada recebi em troca. Fui sinônimo de vida, riqueza e pujança. Nas guerras, fui a solução. Por isso, presenciei os vários ciclos econômicos a que submeteram desastradamente a região. E todos eles praticamente eram contra mim. A borracha com os seus dois ciclos me projetou no mundo, mas foi o do ouro que mais me maltratou: jogaram sem dó nem piedade toneladas de metais pesados em meu corpo. Levaram parte de minha riqueza e me deram apenas o mercúrio e corpos insepultos. Sofro por isso até hoje. Disseram que eu era selvagem, traiçoeiro e assassino. Mas agora, com esta nova investida contra minha nobre existência, estou rendido e percebo o meu fim muito próximo. Hidrelétricas rasgam meu corpo. Bombas explodem em meu leito. O cheiro de dinheiro agora é mais forte do que nunca...”.
“... Destruíram o majestoso espetáculo da piracema. Afogaram minhas cachoeiras que afogavam. Amputaram minhas pernas e braços. Modificaram, sem a minha permissão, toda a forma de vida existente dentro de mim. Desviaram meu leito. Morri. Estou totalmente descaracterizado e me sinto totalmente sem rumo, sem serventia. Não sou mais o Madeira. Inventaram outro caminho para mim. Minha energia de vida será levada para a energia de outros povos muito distantes daqui. Povos que não conheço e que nunca vi em meus barrancos. Povos que nunca nada fizeram por mim. Apenas de longe, mandam a sua ganância para me explorar. E ninguém me defendeu. Ninguém gastou um tostão furado para chorar ou pedir clemência por mim. Me sinto traído e abandonado por quem dei a vida. Por quem ajudei a criar até seus descendentes. Fui trocado por algumas moedas sujas. Por viadutos inacabados, por Shopping Center, passarelas, pontes sobre mim, explosões, violência, corrupção e mentiras. Dizem que entre Porto Velho e São Carlos, ficarei por longos três anos sem mandar em nada e sem dar o ar da graça. Serei um gigante domado, sem forças e cheio de bancos de areia...”.
“... Agora uma mulher vem apertar o botão que explodirá o barranco que selará a minha sentença de morte. Pouco tempo de vida é só o que me resta. Peçam a ela que me deixe em paz. Vocês ganharam a transposição, a isonomia e outros agrados e eu ganhei a morte. Como Judas, vocês me entregaram pelos prometidos trinta dinheiros. Vocês são os maiores responsáveis pela minha morte, bando de traidores. Vocês, em vez de protestar, faziam festa toda vez que se anunciava o fim de mais uma de minhas lindas e belas corredeiras: Teotônio, Santo Antônio, Jirau. Qual dos seus muitos filhos ousou ou teve coragem para me defender? Amaldiçoada seja uma sociedade que nem um Chico Mendes gerou. Acho que vocês nunca gostaram mesmo de mim. Seus lixos de pet e plásticos sempre boiaram em meu corpo. Diferente do Danúbio, do Sena, do Tamisa, do Reno ou do Pó, em solo europeu, onde se tocam músicas clássicas às suas margens e que muitos povos lutaram para salvar todos da sujeira e da extinção, aqui o quê se vê é descaso, agressões de toda sorte e explorações sem precedentes. Até Porto Velho está de costas para mim como se eu nunca existisse. O meu porto sempre foi um barranco fedido e sem urbanização nenhuma. Os seus muitos prefeitos jamais fizeram qualquer coisa por mim, algo que me embelezasse. Próximo da morte e chorando pela ingratidão sofrida me despeço de todos vocês esperando e torcendo para que tenham feito um bom negócio. E quem sabe em outras vidas tornaremos a nos encontrar, eu, a quizila amazônica e vocês, os ingratos, e agora ricos, moradores de minhas margens e barrancas...”.   




*É Professor em Porto Velho (http://blogdotionaza.blogspot.com/)