Calama, a Veneza Esquecida do
Madeira
Professor
Nazareno*
O paraíso existe e está localizado em Rondônia. Às
margens do lendário rio Madeira distante uns 200 quilômetros de Porto Velho,
entre a divisa com o Estado do Amazonas e a foz do rio Ji-Paraná ou Machado, o
pequeno e isolado distrito de Calama, com uma pequena população não superior a
duas mil pessoas está lá como se perdido no tempo. Banhada pelas barrentas
águas do Madeirão e quase toda cercada pela imponente floresta Amazônica, a
mais antiga das vilas da Capital não tem e nunca teve carros ou qualquer outro
tipo de automóvel circulando em suas verdes e arborizadas ruas e o seu acesso
só é permitido pelos barcos de linha ou de helicóptero. Cortada por inúmeras
pontes de madeira e de ferro que ligam os seus bucólicos três bairros ao
centro, a última povoação ao norte do Estado é bela e liga o passado direto ao
futuro.
Muito mais antiga do que Porto Velho e Guajará-Mirim, as
duas primeiras cidades de Rondônia, devido ao processo de povoamento
remanescente da beira dos rios ainda no antiqüíssimo Primeiro Ciclo da
Borracha, a insólita vila resistiu bravamente a toda e qualquer tentativa de modernização.
Quem há 30 anos conheceu Calama, hoje percebe que ela está um pouco menor, mas
com uma alma superior a qualquer concentração urbana do Brasil e do mundo. Nunca
teve a tração animal e nem com ela convive, mas tem internet e das mais
modernas que se conhece só que estranhamente pouco procurada em tempos de mundo
digital. A violência infelizmente já está chegando, turbinada pelo consumo de
álcool e de outras drogas, mas ainda é possível dormir de portas e janelas
abertas sem o medo de ser incomodado pela delinqüência.
Tentativas de tirar esta aprazível vila do isolamento, e
conseqüentemente decretar o seu iminente fim, já foram feitas e são tentadas
quase que diariamente. Qualquer estrada ou via que ligue o distrito ao resto do
mundo seria uma tragédia sem precedentes. O charme de Calama é a sua
localização. Com acesso fácil, a invasão de pessoas oriundas das cidades com os
seus vícios, violência, carros, pressa, roubos e outras mazelas seria
inevitável. Já há cidadãos de Calama morando em várias partes do mundo: de
Estocolmo na Suécia, Genebra na Suíça, São Paulo ou Rio de Janeiro é possível
observar seus filhos que saudosamente voltam às suas origens todos os anos.
Porém, Calama pode desaparecer: o Madeira, com a sua fúria, está impiedosamente
retirando-lhe o barranco que lhe dá sustentação. Medo e angústia campeiam no lugar.
O fim de Calama, entretanto, é o fim de uma época. O
começo da História de Rondônia está testemunhado naquelas barrancas, outrora
repletas de “pelas” de borracha e
outros produtos amazônicos e hoje quase esquecidas pelo poder público. Os
velhos casarões do Segundo Ciclo da Borracha e hoje caindo literalmente aos
pedaços dão pena a quem os observa. A construção das hidrelétricas no Madeira
também não trouxe boas notícias para aquele povo ribeirinho: entre Porto Velho
e o distrito de São Carlos em breve ficarão bem pior as condições para a
navegabilidade. Dificuldades aumentarão e pode demorar ainda mais a viagem de
barco até a capital. Por conta do “estupro”
sistemático do rio Madeira, a oferta de peixes e outros produtos diminui a cada
ano e não se vêem medidas efetivas de compensação para a população carente.
Impossível não se lembrar da Calama do Senhor Benjamim
Silva, de Alfredo Teles, do professor Goldsmith Correa Gomes, do comerciante
Joaquim Pires, da Dona Mercedes, do Chico Prestes, do Ivo Santana, do Santa
Bárbara, do Padre Vitório e de tantos outros heróis sempre lembrados pelos
moradores. Como esquecer o bom futebol de Calama que já exportou craques até
para a Europa? O clássico local Remo e Ponte Preta, a equipe do São Francisco e
tantos outros bons times? O peixe com farinha, a carne de caça, o encontro das
águas, o fenômeno das terras caídas, as enchentes e as muitas pessoas que se
perderam em suas fechadas matas? A secular Calama é assim mesmo: combina o
velho com o novo sem perder o seu charme, o seu encanto. Resiste a toda forma
de agressão e não se deslumbra com o moderno. Mãe de toda a Rondônia, a pacata
vilazinha observa atentamente, como uma verdadeira matriarca que é, o
desenvolvimento dos filhos e pede para viver confortavelmente no seu anonimato
para que possa ter mais alguns anos de vida. Existe progresso melhor do que ter
uma vida sem violência, sem drogas, sem pressa, sem trânsito, sem poluição e
sem as mazelas de um mundo dito desenvolvido e civilizado?
É Profesor em Porto Velho.
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