Oração de um Rio Estuprado
Professor Nazareno*
“... Sou o rio Madeira, mas já tive outros nomes: rio das Madeiras, rio Kaiary. Embora com quase um milhão de anos, afirmam que sou muito jovem e que ainda estou em formação. Parte de meu corpo (na verdade, minhas águas) nasce nos Andes bolivianos e caminha celeremente com outros nomes, já em território brasileiro, quando se junta a outros rios, para a minha formação atual. Sou alimentado pelos altos índices de pluviosidade que ajudo a formar no rigoroso inverno amazônico. Sou belo, é o que sempre escuto dizerem de mim. Serpenteio entre montanhas, planícies e florestas úmidas. Guardo em minhas entranhas variadas espécies de peixes e outros animais comestíveis. A minha água, apesar de esbranquiçada e barrenta, sempre foi doce como o mel e ser potável sempre foi a sua grande e reconhecida característica maior. No calor, minha água é gelada. Na friagem, ela fica morna como num passe de mágica. De muitos, matei a sede, a fome e até a ganância por metais preciosos. No Brasil, sou o maior tributário de outro rio também gigante: o Amazonas. Sou o maior rio-afluente do mundo. Navegável, respondo pelo equilíbrio ambiental amazônico...”.
“... No país vizinho, banho Departamentos e Províncias. No Brasil, rego dois
Estados. Um dos quais, o mais agressivo contra a minha existência, ajudei a
formar quando participei da criação de suas duas primeiras cidades. Com pouco
mais de 330 quilômetros de uma ferrovia que me margeia, mas já esquecida e
abandonada, levei um país inteiro do centro do continente ao encontro com o
Atlântico e nada recebi em troca. Fui sinônimo de vida, riqueza e pujança. Nas
guerras, fui a solução. Por isso, presenciei os vários ciclos econômicos a que
submeteram desastradamente a região. E todos eles praticamente eram contra mim.
A borracha com os seus dois ciclos me projetou no mundo, mas foi o do ouro que
mais me maltratou: jogaram sem dó nem piedade toneladas de metais pesados em
meu corpo. Levaram parte de minha riqueza e me deram apenas o mercúrio e corpos
insepultos. Sofro por isso até hoje. Disseram que eu era selvagem, traiçoeiro e
assassino. Mas agora, com esta nova investida contra minha nobre existência,
estou rendido e percebo o meu fim muito próximo. Hidrelétricas rasgam meu
corpo. Bombas explodem em meu leito. O cheiro de dinheiro agora é mais forte do
que nunca...”.
“... Destruíram o majestoso espetáculo da piracema. Afogaram minhas
cachoeiras que afogavam. Amputaram minhas pernas e braços. Modificaram, sem a
minha permissão, toda a forma de vida existente dentro de mim. Desviaram meu
leito. Morri. Estou totalmente descaracterizado e me sinto totalmente sem rumo,
sem serventia. Não sou mais o Madeira. Inventaram outro caminho para mim. Minha
energia de vida será levada para a energia de outros povos muito distantes
daqui. Povos que não conheço e que nunca vi em meus barrancos. Povos que nunca
nada fizeram por mim. Apenas de longe, mandam a sua ganância para me explorar.
E ninguém me defendeu. Ninguém gastou um tostão furado para chorar ou pedir
clemência por mim. Me sinto traído e abandonado por quem dei a vida. Por quem
ajudei a criar até seus descendentes. Fui trocado por algumas moedas sujas. Por
viadutos inacabados, por Shopping Center, passarelas, pontes sobre mim,
explosões, violência, corrupção e mentiras. Dizem que entre Porto Velho e São
Carlos, ficarei por longos três anos sem mandar em nada e sem dar o ar da
graça. Serei um gigante domado, sem forças e cheio de bancos de areia...”.
“... Agora uma mulher vem apertar o botão que explodirá o barranco que
selará a minha sentença de morte. Pouco tempo de vida é só o que me resta. Peçam
a ela que me deixe em paz. Vocês ganharam a transposição, a isonomia e outros
agrados e eu ganhei a morte. Como Judas, vocês me entregaram pelos prometidos
trinta dinheiros. Vocês são os maiores responsáveis pela minha morte, bando de
traidores. Vocês, em vez de protestar, faziam festa toda vez que se anunciava o
fim de mais uma de minhas lindas e belas corredeiras: Teotônio, Santo Antônio,
Jirau. Qual dos seus muitos filhos ousou ou teve coragem para me defender?
Amaldiçoada seja uma sociedade que nem um Chico Mendes gerou. Acho que vocês
nunca gostaram mesmo de mim. Seus lixos de pet e plásticos sempre boiaram em
meu corpo. Diferente do Danúbio, do Sena, do Tamisa, do Reno ou do Pó, em solo
europeu, onde se tocam músicas clássicas às suas margens e que muitos povos
lutaram para salvar todos da sujeira e da extinção, aqui o quê se vê é descaso, agressões de toda sorte e explorações sem precedentes. Até Porto Velho está
de costas para mim como se eu nunca existisse. O meu porto sempre foi um
barranco fedido e sem urbanização nenhuma. Os seus muitos prefeitos jamais
fizeram qualquer coisa por mim, algo que me embelezasse. Próximo da morte e
chorando pela ingratidão sofrida me despeço de todos vocês esperando e torcendo
para que tenham feito um bom negócio. E quem sabe em outras vidas tornaremos a
nos encontrar, eu, a quizila amazônica e vocês, os ingratos, e agora ricos,
moradores de minhas margens e barrancas...”.
*É Professor em Porto Velho (http://blogdotionaza.blogspot.com/)
3 comentários:
Professor Nazareno,
Bom dia!
Também sou professora e moro em Jaru.´
Sempre que aparece um texto de sua autoria, sou leitora e admiro muito seu estilo, conteúdos, senso crítico e conhecimento. Parabéns e continue!
"Escrever é um Ato de Liberdade", palavras do grande e sempre presente Educador Paulo Freire.
Minha mensagem é para dar-lhe os meus Parabéns pelo Belo, Riquíssimo texto sobre o nosso Rio Madeira. Você conseguiu traduzir em palavras a súplica desse Rio! Além disso, abordou dados históricos e atualíssimos, além das questões econõmicas, políticas e sociais que envovem esse Rio. Seu texto, portanto, está completo!
- Peço permissão para encaminhar seu texto às pessoas que lutam pela sobrevivência da Vida no Planeta. Aqui em Jaru temos várias. Veja em anexo, copiei do site preservando a autoria que é você.
- Sugestão:
Esse texto não poderá ficar só no site que logo estará no arquivo. Encaminhe para muitas pessoas, outros professores de História, Língua Portuguesa, Geografia, Sociologia, etc; Envie-o para Escolas... Se possível, faça isso por meio de ofício onde você poderá justificar que o texto ajudará, além de leitura, proporcionará conhecimentos a respeito desse Rio em vários aspectos.
- Haverá, no dia 10 próximo, num distrito pertecente a Guajará-Mirim, a Romaria da Terra e das Águas. É sempre um acontecimento marcante, comprometedor, bonito e muito participativo... Encaminhe antes esse texto ao Bispo daquela Diocese, Dom Geraldo Verdier. Tenho certeza que Dom Moacyr e Dom Antônio Possamai (Porto Velho), também vão ler esse texto com carinho e vão divulgar. Faça chegar às mãos desses e de outros que estão a frente desse Evento. Ah! Encaminhe ao Padre Luiz Ceppe. Ele mora em Porto Velho e é coordenador das Pastorais Sociais da Região Norte ( Dioceses de RO/AC e várias do Amazonas)
obs. A Romaria da Terra e das Águas é um Evento aberto a todos que queiram participar. Caso queira, verifique aí em Porto Velho, pois de todos os lugares muitas Caravanas estão sendo organizadas.
- Desculpe-me, mas tive confiança em apresentar-lhe essas sugestões, mesmo sem conhecê-lo pessoalmente. Senti que esse texto precisa ser mais conhecido e divulgado. Ele desperta, faz pensar, leva a atitudes práticas, necessárias e urgentes.
- Professor Nazareno, esse seu texto é profético! É um grito de Socorro que vem do Silêncio. Das profundezas das águas desse Rio ameaçado pela maldade e ganância humana.
Se o Rio o inspirou, essa Luz veio do Criador de toda Vida no Planeta! Vida que pede Socorro!
Meu irmão, muito obrigada por partilhar tanta riqueza com todos nós que também sofremos com a destruição desse Rio Madeira e da Vida no Planeta.
E-mail da professora Luzia Cândido
Caro amigo Prof. Nazareno, como professor e biólogo, fico muito triste e preocupado com o que vai acontecer daqui alguns minutos, ou horas ou dias ou até anos. Como cristão fico muito emocionado com o que estão fazendo com a nossa mãe natureza.Sou paulista, da região dos grandes lagos das hidrelétricas. Parabens pelas sábias palavras.
Rondônia caminha para o tão sonhado desenvolvimento em detrimento da nossa natureza. Desenvolvimento sustentável é algo que por essas terras não passam. É triste saber que esse imponente rio foi "estuprado" e não teve posibilidade de defesa e tudo isso por dinheiro. Relamente muito triste.
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