“Carraspana no Tonhão”
Professor Nazareno*
O dia 02 de novembro é o dedicado aos mortos. Os outros
dias do ano devem ser dedicados aos vivos. Como de costume fui ao “Cemitério
dos Pobres” acender velas para os mortos que não tenho aqui. Reverencio apenas
a finada Ceron. Porto Velho tem 04 cemitérios: o de Santo Antônio, conhecido
pela alcunha de “Tonhão” e falado como sendo o reduto dos pobres daqui, o dos
Inocentes no centro da cidade, e dois outros bem mais suntuosos e requintados:
um na entrada leste da nossa capital, saída para Cuiabá, o Jardim da Saudade e
outro na saída sul, sentido Acre, do lado oposto à Universidade Federal de
Rondônia, a Unir. Este, mais vivo e ativo do que a sua vizinha de frente.
Enterrar e depois acender velas para os seus mortos é uma
tradição milenar entre os cristãos. Outros povos e religiões costumam queimar (ou
cremar) os seus mortos e guardar as cinzas como lembrança. Este costume não
daria certo entre os cristãos, pois conheço muita gente que depois de queimada
não daria uma única colher de cinzas. Mal terminaria o ritual e um simples
vento faria desaparecer o sujeito no ar. Deve ser por isso que o costume de
velar os mortos é ensinado de geração a geração entre nós. E mesmo depois de
inventada a lâmpada elétrica, os simplórios mantêm a tola tradição.
Vi de tudo lá pelas bandas do “Tonhão”. Resolvi comer uma
bela e suculenta feijoada que estavam vendendo nas proximidades das tumbas.
Havia também moqueca de peixe, sucos, guaranás, cervejas e toda a sorte de
iguarias. Um comércio de compra e venda que os cristãos católicos permitem e
acham até normal. Tudo por ali era alegria, felicidade, festa, risos e para
falar a verdade não vi quase ninguém chorando pelos seus mortos. Fiquei
impressionado com algumas luxuosas tumbas e percebi que o capitalismo rompeu a
barreira da morte também. Morrer sempre dá lucro a alguém.
Porém o mais impressionante foi observar que o consórcio
que está construindo a Hidrelétrica de Santo Antônio insiste em dizer para o
público que acende velas que o cemitério não será alagado quando a barragem
estiver pronta. Pode até não ser alagado, mas a proximidade com tanto volume de
água fará certamente aquele “canto santo” sofrer as conseqüências como
assoreamento e talvez até inundação das covas mais profundas. O que faz uma
igrejinha perdida no meio de tanto concreto? É o capitalismo de novo agindo, só
que profanando, com nossa permissão, os nossos lugares sagrados.
De todos os mortos daquele lugar, no entanto, o que mais
nos causa dor e tristeza é o rio Madeira. Dilacerado em suas entranhas,
sangrando até a morte, agonizando ante o espetáculo ambicioso e doentio do
bicho homem e covardemente abandonado pelos seus filhos, o outrora rio das
Madeiras é o morto mais famoso dali e deveria ter recebido velas e orações
neste Dia de Finados. Embora hoje ele ria diante dos precatórios do
Sintero/TRT/OAB e da transposição que nunca chegarão, está agonizando e suas
águas já estão paradas entre Porto Velho e São Carlos. Dizem que agora ele
nasce do Santo Antônio para baixo. Talvez seja por isso que a morte de um dos
nossos maiores símbolos tenha sido tramada num lugar tão pouco comum: um
cemitério. Acho que ele agradeceria as velas e as preces, mesmo em meio a
goladas de cachaça, cervejas geladas, comércio intenso, congestionamentos
horrorosos e festejos. Muitos festejos.
*É professor em Porto Velho.
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