sexta-feira, 2 de novembro de 2012

"Carraspana no Tonhão"



“Carraspana no Tonhão”


Professor Nazareno*


O dia 02 de novembro é o dedicado aos mortos. Os outros dias do ano devem ser dedicados aos vivos. Como de costume fui ao “Cemitério dos Pobres” acender velas para os mortos que não tenho aqui. Reverencio apenas a finada Ceron. Porto Velho tem 04 cemitérios: o de Santo Antônio, conhecido pela alcunha de “Tonhão” e falado como sendo o reduto dos pobres daqui, o dos Inocentes no centro da cidade, e dois outros bem mais suntuosos e requintados: um na entrada leste da nossa capital, saída para Cuiabá, o Jardim da Saudade e outro na saída sul, sentido Acre, do lado oposto à Universidade Federal de Rondônia, a Unir. Este, mais vivo e ativo do que a sua vizinha de frente.
Enterrar e depois acender velas para os seus mortos é uma tradição milenar entre os cristãos. Outros povos e religiões costumam queimar (ou cremar) os seus mortos e guardar as cinzas como lembrança. Este costume não daria certo entre os cristãos, pois conheço muita gente que depois de queimada não daria uma única colher de cinzas. Mal terminaria o ritual e um simples vento faria desaparecer o sujeito no ar. Deve ser por isso que o costume de velar os mortos é ensinado de geração a geração entre nós. E mesmo depois de inventada a lâmpada elétrica, os simplórios mantêm a tola tradição.
Vi de tudo lá pelas bandas do “Tonhão”. Resolvi comer uma bela e suculenta feijoada que estavam vendendo nas proximidades das tumbas. Havia também moqueca de peixe, sucos, guaranás, cervejas e toda a sorte de iguarias. Um comércio de compra e venda que os cristãos católicos permitem e acham até normal. Tudo por ali era alegria, felicidade, festa, risos e para falar a verdade não vi quase ninguém chorando pelos seus mortos. Fiquei impressionado com algumas luxuosas tumbas e percebi que o capitalismo rompeu a barreira da morte também. Morrer sempre dá lucro a alguém.
Porém o mais impressionante foi observar que o consórcio que está construindo a Hidrelétrica de Santo Antônio insiste em dizer para o público que acende velas que o cemitério não será alagado quando a barragem estiver pronta. Pode até não ser alagado, mas a proximidade com tanto volume de água fará certamente aquele “canto santo” sofrer as conseqüências como assoreamento e talvez até inundação das covas mais profundas. O que faz uma igrejinha perdida no meio de tanto concreto? É o capitalismo de novo agindo, só que profanando, com nossa permissão, os nossos lugares sagrados.
De todos os mortos daquele lugar, no entanto, o que mais nos causa dor e tristeza é o rio Madeira. Dilacerado em suas entranhas, sangrando até a morte, agonizando ante o espetáculo ambicioso e doentio do bicho homem e covardemente abandonado pelos seus filhos, o outrora rio das Madeiras é o morto mais famoso dali e deveria ter recebido velas e orações neste Dia de Finados. Embora hoje ele ria diante dos precatórios do Sintero/TRT/OAB e da transposição que nunca chegarão, está agonizando e suas águas já estão paradas entre Porto Velho e São Carlos. Dizem que agora ele nasce do Santo Antônio para baixo. Talvez seja por isso que a morte de um dos nossos maiores símbolos tenha sido tramada num lugar tão pouco comum: um cemitério. Acho que ele agradeceria as velas e as preces, mesmo em meio a goladas de cachaça, cervejas geladas, comércio intenso, congestionamentos horrorosos e festejos. Muitos festejos.



*É professor em Porto Velho.

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