Livros gays,
livros santos
Professor
Nazareno*
O caso medieval
dos “livros de Ariquemes” ainda dará
muito que falar. Vergonha nacional e até internacional, a mutilação dos livros
didáticos a pedido do prefeito Thiago Flores e de um grupo de vereadores
evangélicos daquela simpática cidade rondoniense entrará para os anais da
história como uma das maiores violências contra o bom senso e as liberdades
individuais reinantes no país neste início de século XXI. Desde a queima de livros
pelos nazistas em 1933 na Alemanha que não se via tamanha estupidez e
imoralidade em nome da moral e dos bons costumes. O PMDB, partido de Flores e
herdeiro único do MDB de Ulysses Guimarães, lutou heroicamente durante a
Ditadura Militar contra a censura e a falta de liberdade de expressão. Não poderia
ter entrado nesta fria e nem permitido esta vergonha absurda e anacrônica.
A volta da censura por motivos
religiosos lembra os duros tempos dos Tribunais da Santa Inquisição e também da
Ditadura Militar. E não adianta invocar a vontade do povo soberano de Ariquemes
para tomar medida tão esdrúxula. Um município não pode criar leis que
contrariem a Constituição do país. O artigo 220 em seu segundo parágrafo é
claro: “censura é todo procedimento oficial
visando a impedir a livre circulação de ideias contrárias aos interesses dos
detentores do Poder Público”. Se os vereadores evangélicos e o prefeito
Thiago Flores não gostaram do que leram (se é que leram) nos livros, por
princípios constitucionais estão impedidos de censurar, vetar ou mutilar
qualquer parte dessas obras. Aliás, eles pediram a autorização dos autores ou
da editora para fazer isso? E os professores que fizeram a escolha, por que não
foram ouvidos?
Além do mais, Ariquemes tem uns 90
mil habitantes. Pouco mais de 27 mil apenas votou no atual prefeito. Será que
destes, todos concordam com a decisão absurda e cerceadora da expressão alheia?
Até parece que na cidade não há bons advogados para ter orientado melhor o
prefeito censor. Pior: não vi até agora nenhum professor da cidade reclamar do
fato. Nem os que escolheram os livros. Falar que existem famílias diferentes
das tradicionais não pode. Falar que existem homossexuais e minorias também
não. Mas assistir ao BBB e navegar em sites pornográficos da internet parece
que pode. Não é incrível? Pior mesmo é um cara metido a jornalista defender a
atitude insana do prefeito. Um comunicador defender publicamente a censura é o
fim dos tempos. Será que se sua coluna fosse adulterada ou censurada ele ficaria
feliz e alegre?
Mas se a moda de Ariquemes pegasse,
seria interessante ver obras inteiras sendo maculadas, cortadas, tesouradas,
censuradas. Dom Casmurro de Machado de Assis teria outro nome ou simplesmente
as páginas “inconvenientes” do livro
de “Bentinho e Capitu” seriam
suprimidas. Obras inteiras consagradas pelas literaturas nacional e mundial
seriam picotadas, mudadas e adulteradas sem a permissão de autores e editoras e
ainda teria a conivência burra de jornalistas desinformados. Clarice, Drummond,
o próprio Machado, Euclides da Cunha, Lima Barreto, Eça de Queirós, Fernando
Pessoa e tantos outros sendo modificados por causa da religião e do
obscurantismo seria uma curiosa volta aos tempos medievais. Não existem livros
gays nem santos. O que existem são mentes doentes, bitoladas, má fé, o desejo
de obscurantismo, burrice e hipocrisia. Muita hipocrisia. Será que já marcaram
o dia do índex lá em Ariquemes? Vou lá ver.
*É
Professor em Porto Velho.
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