terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Livros gays, livros santos


Livros gays, livros santos

Professor Nazareno*

            O caso medieval dos “livros de Ariquemes” ainda dará muito que falar. Vergonha nacional e até internacional, a mutilação dos livros didáticos a pedido do prefeito Thiago Flores e de um grupo de vereadores evangélicos daquela simpática cidade rondoniense entrará para os anais da história como uma das maiores violências contra o bom senso e as liberdades individuais reinantes no país neste início de século XXI. Desde a queima de livros pelos nazistas em 1933 na Alemanha que não se via tamanha estupidez e imoralidade em nome da moral e dos bons costumes. O PMDB, partido de Flores e herdeiro único do MDB de Ulysses Guimarães, lutou heroicamente durante a Ditadura Militar contra a censura e a falta de liberdade de expressão. Não poderia ter entrado nesta fria e nem permitido esta vergonha absurda e anacrônica.
            A volta da censura por motivos religiosos lembra os duros tempos dos Tribunais da Santa Inquisição e também da Ditadura Militar. E não adianta invocar a vontade do povo soberano de Ariquemes para tomar medida tão esdrúxula. Um município não pode criar leis que contrariem a Constituição do país. O artigo 220 em seu segundo parágrafo é claro: “censura é todo procedimento oficial visando a impedir a livre circulação de ideias contrárias aos interesses dos detentores do Poder Público”. Se os vereadores evangélicos e o prefeito Thiago Flores não gostaram do que leram (se é que leram) nos livros, por princípios constitucionais estão impedidos de censurar, vetar ou mutilar qualquer parte dessas obras. Aliás, eles pediram a autorização dos autores ou da editora para fazer isso? E os professores que fizeram a escolha, por que não foram ouvidos?
            Além do mais, Ariquemes tem uns 90 mil habitantes. Pouco mais de 27 mil apenas votou no atual prefeito. Será que destes, todos concordam com a decisão absurda e cerceadora da expressão alheia? Até parece que na cidade não há bons advogados para ter orientado melhor o prefeito censor. Pior: não vi até agora nenhum professor da cidade reclamar do fato. Nem os que escolheram os livros. Falar que existem famílias diferentes das tradicionais não pode. Falar que existem homossexuais e minorias também não. Mas assistir ao BBB e navegar em sites pornográficos da internet parece que pode. Não é incrível? Pior mesmo é um cara metido a jornalista defender a atitude insana do prefeito. Um comunicador defender publicamente a censura é o fim dos tempos. Será que se sua coluna fosse adulterada ou censurada ele ficaria feliz e alegre?
            Mas se a moda de Ariquemes pegasse, seria interessante ver obras inteiras sendo maculadas, cortadas, tesouradas, censuradas. Dom Casmurro de Machado de Assis teria outro nome ou simplesmente as páginas “inconvenientes” do livro de “Bentinho e Capitu” seriam suprimidas. Obras inteiras consagradas pelas literaturas nacional e mundial seriam picotadas, mudadas e adulteradas sem a permissão de autores e editoras e ainda teria a conivência burra de jornalistas desinformados. Clarice, Drummond, o próprio Machado, Euclides da Cunha, Lima Barreto, Eça de Queirós, Fernando Pessoa e tantos outros sendo modificados por causa da religião e do obscurantismo seria uma curiosa volta aos tempos medievais. Não existem livros gays nem santos. O que existem são mentes doentes, bitoladas, má fé, o desejo de obscurantismo, burrice e hipocrisia. Muita hipocrisia. Será que já marcaram o dia do índex lá em Ariquemes? Vou lá ver.




*É Professor em Porto Velho.

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