Desventuras em
Ali Tremes
Professor
Nazareno*
A pequenina e medieval cidade de Ali
Tremes fica no interior do Afeganistão. Não tem nenhuma importância para aquele
país asiático muito menos para o mundo. É um daqueles lugares que poderia ser
chamado de “Cu do Mundo”, mas isso seria
um total desrespeito a esta parte do corpo humano. Só que o jovem município
está sendo palco de muita polêmica ultimamente. Não pela violência desenfreada
e quase sem controle, típica do lugarzinho inóspito, mas por questões, digamos
assim, de ideologia. Não ideologia política ou partidária, mas de gênero. O
prefeito da cidade, Sir Girolamo Savonarola, em conluio com vários membros do
Conselho Municipal, decidiu interferir na educação das crianças e jovens do
município. Criou um decreto municipal que manda rasgar todas as páginas dos
livros escolares que falam sobre ideologia de gênero.
Quase todas as pessoas que moram em
Ali Tremes são cidadãos bons e preocupados com o desenvolvimento do lugar. São indivíduos
idôneos, trabalhadores, zelosos, fraternos. Quais deles farão o serviço sujo de
rasgar livros didáticos? O problema é que apenas uma meia dúzia deles está
muito inconformada com os avanços sociais e com os rumos que a sociedade “alitremense” estaria tomando e por isso
insistem em voltar no tempo. Querem a todo custo entrar na Idade Média. Poucos
dos que apoiam esta “intifada moralista”
percebem que rasgar livros é quase a mesma coisa que queimar livros. E pior: a
História diz que “quem queima livros,
queima homens”. Os nazistas, por exemplo, começaram sua trajetória fazendo
fogueira em livros. Na Alemanha, em maio de 1933, vários autores tiveram suas
obras queimadas pelo fogo.
Sir Girolamo Savonarola é um homem
inteligente. Jovem e estreante na política, ele tem claras preocupações com as
futuras gerações do seu lugar e não pode ser confundido com um simples
justiceiro messiânico. “Como pode um
livro ensinar ‘coisas do mal’ a indefesos seres humanos?”. Deve ter
pensando o ilustre alcaide. “As pessoas
que escolheram estes livros deveriam ir para a fogueira junto com estes
escritos diabólicos”, devem ter pensado outros moralistas convictos. Se em
Ali Tremes existem homossexuais, ninguém deve saber disto, muito menos as
crianças. Este é o pensamento de muitos naquela cidade afegã. União estável,
direitos humanos, justiça para todos, ausência de violência, principalmente no
campo, democracia, pluralidade de opiniões e honestidade são temas proibidos
que não devem ser debatidos por ninguém.
Porém não é só a cidade de Ali
Tremes que vive dias difíceis. O país inteiro ainda não se encontrou depois do
golpe constitucional que foi dado recentemente. Ser “fiscal de furico alheio” é o mínimo no Afeganistão de hoje.
Recentemente as redes sociais foram inundadas de comentários festivos e alegres
depois que a ex-primeira dama do país sofreu um AVC. Desejar a morte dos outros
virou coisa banal num país eminentemente cristão. O sistema carcerário está um
caos e para a alegria de muitos afegãos tem matanças quase diariamente nos
presídios lotados. Estranhamente, o sangue alheio provoca risos e euforia em
muitos “cidadãos do bem”. A
carnificina no meio rural, fato em que Ali Tremes é um péssimo exemplo, é uma
constante e Sir Girolamo Savonarola e seus seguidores sabem muito bem disto.
Tomara que a fogueira de vaidades não queime os defensores do retrocesso e da
censura. Só suas velhas ideias.
*É
Professor em Porto Velho.
Um comentário:
Pena que em Ali não comam carne bovina, só a humana. Ademais, comer carne tá osso, ou melhor, tá ácido...
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