Confissões
de um ribeirinho
Professor
Nazareno*
O
rio Madeira está muito cheio hoje. A régua de medição das enchentes está
marcando quase 17 metros em Porto Velho. Essa marca é a cota de alagação, segundo
os “sábios” da Defesa Civil. E é de fato uma das maiores
cheias do rio. Políticos espertalhões se dizem preocupados com a população
ribeirinha no baixo, médio e até alto Madeira. Autoridades municipais e
estaduais dizem que vão mandar mantimentos para toda a população afetada. São
as “esmolas” que se doam em toda época de enchente. As redes sociais são
inundadas com relatos de ribeirinhos “sofrendo” com mais este revés da
natureza. O caos se abate de forma violenta sobre toda essa gente. Tudo
mentira, besteira, vitimização e também pura exploração de uma situação que em
si é um pouco caótica sim, mas que todo cidadão que mora às margens do Madeira
já está habituado a conviver.
Durante
as enchentes a vida na beira do rio Madeira é infinitamente melhor do que no
verão e na vazante do rio. Claro que há casos de perda quase que total de
algumas plantações na área ribeirinha como a banana, principalmente. Há também
perdas menores de algumas outras árvores frutíferas. E só! Melancia, por
exemplo, só se produz durante o verão quando o rio está seco. E óbvio que
também existe o incômodo de se mudar de sua casa, que foi alagada pela força
das águas. Mas isto é feito lentamente, uma vez que a enchente não chega de uma
só vez como nas enxurradas. As águas sobem a uma média de 10 a 20 centímetros
por dia ou até menos. No inverno, tudo é mais fácil. Os barcos navegam pelos
paranás e furos encurtando as viagens em muitas horas. Além do mais, quando o
rio está cheio a correnteza fica mais rápida e não há pedras nem bancos de
areia.
Os
ribeirinhos, de um modo geral, amam as enchentes, pois sabem que em toda cheia,
o Madeira vai irrigar com suas “milagrosas águas” pedaços maiores de
terras para as futuras plantações. Se não fossem as enchentes, tudo seria mais
pobre e a produção às margens desse “santo rio” seria bem
menor no ano seguinte. Isso sem falar na fartura de peixes que estão subindo o
rio por causa do alagamento dos igarapés e igapós. De tambaquis a surubins, jatuaranas,
piraíbas, pirapitingas, curimatãs, jaraquis e até bodós infestam as margens piscosas
do velho e abençoado Madeira dando ao ribeirinho a sensação de muita fartura.
Os peixes nessa época do ano estão todos gordos e ovados. Bem diferente das
sardinhas e mandis “tísicos” do verão. Aliás, é esse mesmo
verão que assombra o ribeirinho: água distante para se buscar, poucas frutas,
tudo esturricado e seco.
As
prefeituras mandam, nas “esmolas”, muita água mineral para os
ribeirinhos. Quanta desfaçatez! Quanta ignorância! O ribeirinho raiz bebe é a
água do Madeira mesmo ou de qualquer igarapé. Conheço muitas pessoas que têm 80
anos ou mais e sempre beberam água do “rio das Madeiras” e
ainda estão vivos e com muita saúde. A Defesa Civil, se dizendo preocupada em
salvar vidas, às vezes manda “homens treinados” para a área ribeirinha. Só
que já houve casos em que esses mesmos “guarda-vidas” sequer sabiam
andar de canoa. A cada enchente a vida se renova no Madeira. A floresta fica
mais irrigada e mais verde, as frutas abundam, os animais se reproduzem e
desaparece a fome. Até a casa do ribeirinho fica mais limpa, uma vez que há
água por todos os lados. Só que toda enchente é sinônimo de emergência e de
calamidade e o dinheiro caminha bem mais rápido. Não para os ribeirinhos, mas
para o político ladrão. Precisamos de mais enchentes!
*Foi Professor em Porto
Velho.